José Duarte: Azul Português João Henriques Carlos Almeida Conhecido pelos seus programas de televisão e rádio, sempre em defesa da boa música e, em particular, do Jazz, José Duarte lança nesta entrevista um olhar sobre a sua carreira, a cena musical e muito mais.
A conversa da qual resultou esta entrevista decorreu em casa de José Duarte em Maio do ano passado. Durante cerca de hora e meia muitos e variados foram os temas abordados, embora com predominância natural da música, tornando esta entrevista uma leitura essencial para quem, como o nosso entrevistado, tem na música não apenas uma paixão, mas um amor para toda a vida.
Diferencial: Contam-se muitas histórias acerca da sua ligação ao Técnico. Reza a lenda que os primeiros concertos de Jazz em Portugal terão sido organizados pelo José Duarte precisamente no Técnico. Qual foi, afinal a sua relação com o Técnico?
José Duarte: Sim, houve vários concertos que eu organizei, mas os primeiros... também não sou tão velho como isso.
Nós fazíamos três espécies de actividades com a Associação do Técnico. Nós, digo eu, éramos, nessa altura, os membros mais activos de um clube Jazz que houve e que se chamava clube universitário de Jazz e que estava ligado à organização das Associações de Estudantes, à R.I.A. que era a Reunião Inter Associações, e onde cada um estava ligado à associação a que pertencia, eu andava em económicas na altura, mas o Técnico tinha um prestígio... liderava um bocado as Associações. E então, para divulgar o Jazz, eu principalmente mais um ou dois do clube Universitário de Jazz fazíamos três espécies de actividades que eram sessões que nós chamávamos, na altura, fonográficas. Íamos para lá, dávamos discurso, púnhamos discos e depois trocávamos impressões com a assistência. Devo dizer-vos que aquilo era um sucesso. A malta gostava muito de ouvir Jazz e de discutir e fazer perguntas sobre Jazz - onde está essa gente, pergunto eu.
Outra [actividade] era organizar sessões com músicos portugueses, os que havia que, proporcionalmente à idade política e cronológica do país era, apesar de tudo, [num número] semelhante ao que é hoje. Isto parece um bocado surpreendente, mas é um facto, pelo menos na minha opinião, ou seja, hoje não há tantos músicos de Jazz bons como na altura havia, progrediu-se pouco nisso, penso eu apesar de termos uma orquestra - uma orquestra que não funciona com qualidade e que vive também à custa de músicos que não são de Jazz e que estão lá a cobrir postos de trabalho que não existem, como sejam trombonistas que não há em Portugal.
A terceira actividade era com bandas que, palpitem, apareciam por aí nos barcos de guerra americanos. Era a única possibilidade de termos músicos estrangeiros, e eles aproveitavam isso para, enfim, fazerem a sua propaganda, mas eram simpáticos. Quantos músicos de Jazz famosos teremos visto sem dar por isso, que estavam na altura na chamada tropa. Enfim, depois da guerra eles davam chocolates na Itália, aqui davam Jazz.
Dif.: Mas isso tudo passava-se num clima de Estado Novo, o Jazz era considerado na altura como algo subversivo...
J.D.: E era.
Dif.: Mas como é que era possível organizar esse tipo de coisas. Era tudo às escondidas?
J.D.: Não. O Técnico tinha muita força. Eu penso que, para a PIDE, tocar no Técnico era uma decisão ponderada, e era feito como uma actividade cultural. Nós tínhamos muita prática disso e não nos expúnhamos em público.
A PIDE considerava nessa altura o Clube Universitário como um bando de bandidos, comunistas, amantes da cultura negra, perigosos adversários do regime; e tinha razão, era uma boa polícia de facto, só não éramos era bandidos, o resto estávamos lá todos. Estava a minha geração, que está agora a sair do poder, que já esteve no poder no 25 de Abril e nos anos seguintes, quer a portuguesa quer a moçambicana, angolana,... estava lá toda no Clube Universitário de Jazz. E de facto usava-se o Jazz porque se gostava de Jazz e se gostava de passar essa paixão, mas por outro lado era uma arma para resistir, para fazer exposições de cultura africana, para fazer colóquios...
Quantos tipos da PIDE não estiveram em sessões dessas que eu fiz por esse país fora. Levava os discos e ia conversar a Castelo Branco, a Vila Real, às duas Vilas Reais...
Dif.: Até se conta uma história de que uma vez deu uma palestra para uma só pessoa... J.D.: Custava muito (ainda hoje me custa) falar para uma só pessoa (o que ainda hoje sucede). Era um médico em Estremoz, um grande amigo meu, que lá foi e que tinha um grande sentido de humor. No fim disse "gostei muito, gostei muito"- "gostou da música?" - "não, na música desligava o aparelho, gostei muito foi de te ouvir".
Dif.: Há pouco estava a dizer que há poucos músicos de Jazz em Portugal. Segundo julgo saber o Jazz tem uma raiz essencialmente popular; no entanto hoje em dia há quem considere que, em termos de teoria musical, é das músicas mais exigentes, bastante mais do que, por exemplo, a música clássica. No entanto, a única escola de música dedicada ao ensino de Jazz em Portugal é o Hot Clube que tem mensalidades elevadíssimas. Isso não poderá estar a afastar muita gente potencialmente interessada do Jazz?
J.D.: Bom fez aí várias perguntas e várias afirmações. Eu discuto, e penso que não tem razão, quando diz que o Jazz é mais difícil ou mais fácil do que a música clássica.
Em segundo lugar o Jazz sempre foi tão difícil como é hoje, porque é uma música que vive à custa da capacidade individual e colectiva dos músicos. Ou seja, por ser uma música de improvisação, de criação na altura, instantânea, quem tem unhas é que toca Jazz; e portanto ou a pessoa tem capacidade para criar e transmitir discursos bem feitos, bem executados e interessantes ou não, e isto não se aprende em nenhuma escola. Depois a base teórica é importante mas não é tão diferente das outras músicas como isso. O que é diferente são uma ou duas bases essenciais e que se situam, por exemplo ao nível rítmico, isso sim é que é essencial.
O Jazz tem uma tradição cultural africana, logo, que nos é completamente estranha. Apesar de termos sido colonizadores durante séculos, não percebemos nada de cultura africana, somos puros ocidentais. Temos uma colocação periférica na Europa, o que sempre nos dá vantagens - somos o povo que eu conheço que tem maior facilidade em se meter em diversas músicas. Nós dominamos com à vontade e percebemos bem a música americana, do sul e do centro (os boleros e os sambas); nós percebemos a música francesa, falamo-la e cantamo-la com bom acento; nós percebemos a música inglesa, falamo-la, pronunciamos bem as palavras, sem sotaque, entendemo-las; Somos, como se costumava dizer, um lugar geométrico de toda esta diversidade de músicas, embora não tenhamos jeito para nenhuma em especial, a não ser para a nossa. Mas, penso que com a cultura africana é que não. Apesar de gostarmos muito dela. A música cabo verdeana é a mais famosa, mas mesmo com a música angolana e a música moçambicana nós damo-nos muito bem, dançamos muito bem e somos muito amigos e cultores dessa música, mas de facto, ao nível rítmico é que nos altera todo o nosso sistema, porque o Jazz propõe uma prática permanente que é oposta àquela em que nós fomos educados e crescemos. É o problema dos tempos fracos e dos tempos fortes. [No entanto] o que é um tempo forte em Jazz é um tempo forte na música em que nós fomos educados. O que lança uma grande confusão nos espíritos é que se altera todo o edifício.
Dif.: Mas enquanto que numa pauta clássica a teoria está lá, estão lá os modos, os sustenidos, enfim tudo, em jazz é necessário ter sempre presente que em cima de determinado acorde podemos usar determinada escala ou modo.
J.D.: Exige mais criatividade, não está tudo escrito, aliás em nenhuma música está tudo escrito, mas na erudita está mais escrito do que na música Jazz. Depende muito da sua escolha, do seu gosto (bom ou mau ou assim assim), depende muito da sua criatividade. Essa é que é a grande dificuldade do Jazz; e isto tudo feito em moldes diferentes dos que está habituado.
Em relação à escola de Jazz do Hot Clube, a minha impressão não é favorável. Acho que os professores ainda são músicos (não sei se me faço entender); infelizmente as instalações são péssimas (eles têm uma esperança, oxalá se concretize, de ampliar a escola e as instalações do clube para se estender pelo prédio todo, o que era bom, aquilo é um clube que já não serve sequer a pobre cena do Jazz em Lisboa), para além de ideologicamente se saber que certas disciplinas dos cursos são dadas de um modo que é altamente discutível. Penso que praticam tarifas altas (e vivem um bocado aflitos de dinheiro apesar de já terem vivido pior), e que estão desactualizados em relação às necessidades e à procura.
Dif.: Qual é a dificuldade para nós, portugueses, em aceitar o Jazz. É rítmico? Porque é que os «cinco minutos de Jazz» não são já «vinte minutos de Jazz».
J.D.: A primeira pergunta penso que é universal. O Jazz será sempre uma música de minorias (não disse elites porque sou uma pessoa educada). São pessoas com pré disposição para a música, com capacidades musicais natas e que depois se vão aperfeiçoando e melhorando e têm maior facilidade em se dar com a música.
Repare que você passa por França ou por Paris e não dá muito pelo Jazz. Você vai a Nova Iorque e não dá rigorosamente pelo Jazz, não vê um cartaz, não vê um programa de televisão, não vê uma revista. Os clubes estão lá, mas é preciso saber onde é, é preciso ir ao jornal e procurar naquela página, é preciso saber que aqueles tipos tocam Jazz e estes não, porque não está objectivamente lá posto que é Jazz.
Perguntou-me porque é que nós não gostamos muito de Jazz, eu penso que somos nós como todos, não somos mais estúpidos nem mais avessos à música, antes pelo contrário, que a maioria dos povos. Quão ridículo é ver um norte americano a tocar a bossa nova, apesar de tecnicamente ser um espanto, não tem aquele feeling, aquela batida que só nós (alguns de nós, claro) e os brasileiros sabem. Que ridículo é ver um inglês a cantar Piaf ou um espanhol a cantar Sinatra, enquanto nós nos safamos mais nisso, também porque a nossa língua se presta mais a isso.
Os "cinco minutos de Jazz" revelam isto exactamente que eu disse, é a técnica do "Ah, é tão bom, não foi?", porque se é mais do que aquilo, hoje em dia isto não é tão verdade como era antigamente (melhor fora), os "cinco minutos de Jazz" em sessenta e seis, nessa altura é que eu andava a arriscar a minha liberdade diariamente, e tenho lá dentro correspondência anónima que me mandaram que envergonharia qualquer padre.
Mas o sucesso dos "cinco minutos" creio que reside em duas características: o ser cinco minutos (que nunca é, são sempre sete ou oito) e o indicativo que foi feliz, o pôr a voz em cima daquele tema de Jazz.
Eu faço aquilo leve para não encher as pessoas de nomes e de conceitos, e tenho um propósito de escolher tudo o que há em Jazz, sem estilos ou músicos dominantes, e, dentro disso, as peças mais apetecíveis, as que ficam mais no ouvido. E pronto, é insistindo (e isto é uma das técnicas da publicidade), é insistindo é que se vende, e como o programa tem quase trinta anos, lá eu vingo-me.
Eu comecei a trabalhar com Jazz na rádio universidade em 58, a fazer um programa de Jazz que se chamava "Jazz, esse desconhecido", e digo-lhe que acho que não perdi tempo, gozei muito eu, pessoalmente, e dei a gozar a muita gente com certeza, mas não foram grandes as vitórias. As gerações substituem-se e permanecem sempre na mesma. O que eu dizia à bocado, onde é que estão aqueles alunos do Técnico, pergunto onde é que estão as centenas de milhares de pessoas que enchiam os concertos de Cascais, os primeiros cinco ou seis.
Eu penso aliás que as duas coisas importantes para uma certa agitação, para um certo falatório sobre o Jazz, nestes últimos anos, os concertos e o aumento de interesse que houve pelo Jazz foram dois extremos: aos "cinco minutos", à presença chata, diária, subliminar, e aos grandes êxitos, monstruosos das quinze mil, doze mil, dez mil pessoas a verem os primeiros concertos em Cascais. Acho que com Cascais e com os "cinco minutos" é que o Jazz, recentemente tem este destaque, é graças a esses dois extremos. Mas já sei que vocês quando forem engenheiros... um engenheiro não ouve Jazz. Um engenheiro casa-se (todos os engenheiros se casam), e depois um engenheiro veste-se, um engenheiro tem outros hábitos... e começa a ouvir outro tipo de música, normalmente a erudita, a ouvir um Rock adulto, com música lá dentro, e esquece o Jazz. O Jazz é a amante, a malta nunca se casa com o Jazz.
Dif.: Em relação à nova música que tem aparecido. A esta onda de rock básico, três acordes, umas palavras com um conteúdo de raiva muito acentuado. Como é que vê a evolução do gosto musical das camadas jovens? Um exemplo claro é que no seu tempo os universitários juntavam-se para ouvir Jazz, hoje juntam-se para ouvir Quim Barreiros, o que seria uma coisa impensável nessa altura.
J.D.: Não só. Juntam-se para ouvir Pedro Abrunhosa.
Dif.: Também queríamos falar sobre ele...
J.D.: Acho essencial o Pedro Abrunhosa. Acho que é muito importante... acho que é impecável a música. Acho que tem um balanço como nunca houve em Portugal...
Tem uma mão do Maceo Parker e também tem uma mão do baterista [Mário Barreiros] que é o grande músico daquilo, que planeia, que ensaia, que estrutura aquilo, embora a chama tenha saído da cabeça do Pedro. Acho do choque que foi o Rui Veloso em 1980, só o Pedro Abrunhosa. A música andou parada este tempo todo.
Portanto penso que a juventude não se junta só a ouvir Quim Barreiros, junta-se a ouvir ouras coisas, e eu tenho uma grande fé, apesar de tudo, uma grande esperança na juventude porque a conheci melhor no meu programa de televisão «Outras Músicas» porque vi muita gente nova, com uma educação despoluida musicalmente, a interessar--se pela música portuguesa autêntica. A trabalhar e a estudar música e instrumentos portugueses, a reconstruir instrumentos portugueses, a praticar em grupo música boa (estou-me, por exemplo a lembrar de dois grupos: «Toque de caixa» e o «Vai de Roda»), há vários, malta nova, da vossa idade e mais nova que acredita nisto e que até à vitória final a esperança não morre, pelo menos. Portanto há muita gente que não só não vai como se ri e percebe o significado do Quim Barreiros do Marco Paulo e desse tipo de música. Só que há uma diferença fundamental entre o Quim Barreiros e o Marco Paulo: o Quim Barreiros é uma pessoa que sabe o que está a fazer.
Eu penso é que isso é mais explicado pelo sistema, vocês não são do tempo... não foi à tanto tempo como isso, vocês são é novos, em que se centravam os interesses da juventude em duas ou três áreas, que eram a música, o futebol e o fado.
Dif.: Porquê essa distinção entre a música e o fado?
J.D.: Para ser mais preciso. Música má, o nacional cançonetismo como se chamou a esse tipo de música. E hoje em dia está-se a passar exactamente o mesmo. Hoje em dia você vê futebol como nunca viu na televisão, quase diariamente, estrangeiro, nacional segundas divisões, primeiras; vê o renascimento do fado, as novas tendências do fado, portanto o revivalismo do fado (eu gosto de fado bem cantado), e vê a outra música, essa, a pirosa a triunfar e as pessoas todas a gostarem. É mais fácil gostar do que não presta do que gostar do que presta, embora a qualidade vença sempre, mais tarde ou mais cedo.
Dif.: E em relação aos Madredeus, como vê esse fenómeno.
J.D.: Acho bocejante, não consigo ouvir mais que dois minutos. Acho que é uma pena ela [Teresa Salgueiro] estar-se a estragar ali. Para além de ser muito bonita, canta muito bem, mas canta melhor do que aquilo.
Dif.: Pensa que ela estaria bem a cantar o quê? Jazz?
J.D.: Não, o Jazz já está cantado. Já estão todas a morrer e agora só restam dois ou três cantores e depois já não haverá mais cantores como havia. Nem outros porque se sujeitam sempre às obras que já foram cantadas pela Ella [Fritzgerald] pelo [Louis] Armstrong, pela Sarah [Vaughn], pela Billie [Holliday]. É um capítulo fechado. Ela estaria bem a cantar outra música, mais viva.
A decisão do preto, a decisão do estar em palco, da monotonia e do marasmo e do parado é muito servir uma estética quase europeia, da Europa Central. É forçar o exótico; e está desligada da música portuguesa e, na generalidade, dos portugueses. Não tem a haver com Portugal, penso eu. O Abrunhosa tem [a haver com Portugal], porque o Abrunhosa canta ali com os valores universais: o sexo e a política, e chama as coisas pelo seu nome. E tem um balanço descomunal. O Parker foi fundamental mas o papel deles todos... Eu conheci-os pessoalmente, eu conhecia o Pedro Abrunhosa há muito tempo, do Jazz. Também há ali uma costela Jazz e Afro-norte americana na música.
Aliás, o Jazz, ainda por cima, tem servido sempre de amparo à melhor música portuguesa. Você vê os cantores e os autores mais acreditados da música portuguesa, como o Fausto, o José Mário Branco, o próprio Zeca Afonso, toda essa gente tinham sempre a tocar com eles músicos de Jazz, que não estavam a tocar Jazz, mas estavam a tocar bem, ou seja, a educação e a abertura dos músicos da música improvisada sempre serviu para outras músicas. Noutros tempos eles viviam nos fossos dos teatros de revista, nos estúdios de gravação, ainda hoje muitos sobrevivem assim, para darem no fim qualidade - mais qualidade - a uma música que, em princípio, não tem nada a ver com a que eles tocam, mas estão ali a cumprir e a ganhar para o pão nosso de cada dia.
Dif.: Ouvindo-o falar, fica-se com a impressão, que o Jazz está a passar uma grande crise. Onde é que o Jazz parou, quem foi o último grande, ou posto de outra maneira, onde é que o Miles Davis começou a errar.
J.D.: Bom, o Miles Davis nunca errou. Facilitou. O Miles foi o último passo inovador do Jazz. Ele acompanhou tudo, desde os anos quarenta, quando tocou com o [Charlie] Parker, e foi dando passos sempre em frente, e para o lado. Verdadeiros saltos qualitativos - cuidado com o termo, porque o termo agora é usado por toda a gente, até pelos ministros deste país, o que é hilariante também porque é um prova de incultura, um salto qualitativo tem muito particularmente um sentido entrópico que não se pode confundir com outro. Quando se diz "salto qualitativo" não é obrigatoriamente para melhor, é uma diferença de qualidade. Se você aquecer água ela transforma-se, dá um salto qualitativo ao transformar-se em vapor de água. Não é melhor o vapor de água do que a água, transformou-se. - o Miles esteve sempre nisso. Até costumo dizer que uma pessoa que queira conhecer Jazz moderno basta ouvir a discografia do Miles. Todos os grandes passaram pelo Miles. Ouvir a Discografia do Miles chega e sobra para, sem dificuldades entender [o Jazz moderno].
Depois penso que ele foi o último, embora não nos possamos esquecer do Ornette Coleman... mas o Ornette Coleman até é melhor a gente esquecer-se porque ele deu esses pulos quando eu entrei para o Jazz, portanto no final dos anos cinquenta. E a partir daí está sempre a tocar a mesma coisa. Portanto deu esse salto e ficou no sítio onde o salto o lançou.
Já o Miles andou em várias direcções. A última direcção, que foi uma opção dele, declarada, foi juntar a ele elementos rítmicos, fantasias e cores, e elementos de cenário e decorativos em concerto, do rock, e desse tipo de música. Ritmicamente empobreceu-lhe a música, os solistas que ele ia escolhendo sucessivamente eram tantos e tão variados, e alguns tão medíocres, que a música dele perdeu. Agora o Miles manteve-se sempre ao longo do seu percurso sinuoso, a pisar outros terrenos, sempre em permanente experimentação. Mas como se estivesse a escolher cenários. Ele tocou sempre da mesma maneira. Se você tirar ao último disco do Miles tudo o que lá está fora o Miles, o Miles toca exactamente como tocava em 1940. Tocava pior, estava mais cansado, com menos pulmão, menos imaginação, já tinha feito muito e um homem não está sempre a criar. A cena é que é diferente, ele permanece o mesmo. E foi o último inovador nos anos sessenta, princípio dos anos setenta quando liga a música à electricidade, e mete os compassos binários. Penso que foi aí que ele lançou a grande confusão no Jazz, porque toda a gente se sentiu autorizada a fazer o mesmo e a tentarem também. Tipos medíocres, tipos que tiveram êxito, tipos bons, tipos maus - mais maus que bons - e o Jazz não andou mais para a frente.
Não quer dizer que a responsabilidade seja do Miles, porque agora, por exemplo estão a tentar tocar o Jazz «unplugged», portanto tudo acústico, ninguém toca ligado à electricidade, nomeadamente os guitarristas, mas de facto estão a repetir ideias, conceitos, que existiam.
Dá a ideia de que já não há nada a fazer. Mas também porque é que se insiste em que haja novas coisas a fazer. Não percebo. Tudo neste mundo, e os músicos são pessoas como as outras, com a única e grande diferença de serem músicos, nasce cresce e morre, porque é que o Jazz não se havia de estar a repetir? Apesar de que ainda hoje se toca Dixieland, música de New Orleans, Blues, swing, bop, free. O Jazz sempre foi assim, todas as correntes existiram simultaneamente, umas não acabam com as outras. Mas porque é que não acabou a evolução? Porque é que o Jazz não consta na história como a pintura impressionista. Hoje em dia ainda há tipos a pintar no estilo dos impressionistas, e no entanto, como corrente nova o impressionismo acabou. E quem diz o impressionismo diz o cubismo, as diferentes correntes. Hoje sabe-se lá o que é a pintura. Se se diz que a pintura está em crise, se já está tudo inventado, se os materiais já estão todos utilizados na pintura. A pintura já avança para outras áreas das artes plásticas que já não são estritamente bidimensionais e espalhar tinta.
Dif.: Basicamente está a dizer que o Miles teve na música o mesmo efeito que o [Marcel] Duchamp teve nas artes quando expôs um urinol voltado ao contrário.
J.D.: Não será exactamente a mesma coisa, mas serve. Gosto mais do [René] Magritte quando desenha um cachimbo e põe por baixo: "isto não é um cachimbo". Isso é que me parece um exemplo acabado, porque de facto o que parece não é. Só é o que é.
Dif.: Passando para outra área, o José Duarte teve uma colaboração com o Carlos Cruz, no "Pão com Manteiga".
J.D.: E trabalho na "Zona Mais"...
Dif.: Aqueles, vá lá, editoriais que ele faz ao princípio...
J.D.: São feitos por três maníaco-depressivos dos quais um sou eu...
Dif.: O José Duarte nunca teve uma tentação de publicar um livro nesse tom, sem ser ligado ao Jazz.
J.D.: Olhe que este último livro que eu publiquei "Jazzé e Outras Músicas" não é um livro sobre música. Isso prejudicou imenso a saída do livro porque não sabiam onde é que haviam de o arrumar. Não sabiam se ia para a secção de música se ia para os romances, enfim para a ficção. Uns diziam nuns sítios, outros diziam noutros sítios e eu disse "é fácil, põe-se nos dois sítios".
Há um projecto que eu nunca farei, esse não farei mas enfim, tenho que morrer com alguma coisa por fazer... gostava de fazer um livro de «short stories» sobre Jazz, com personagens ficcionados, mas que vivessem no mundo do Jazz. O músico, a amante, o "dealer" de droga, o produtor; para reflectir e para por em historinhas o que eu sei sobre o mundo do Jazz. Passa-se muito por trás dos músicos e por trás dos concertos e por trás dos nomes. A vida de um músico de Jazz, normalmente, regra geral, a privada é muito interessante, porque para um tipo ser um verdadeiro músico de Jazz não pode ser uma pessoa comum.
Dif.: Como é que uma pessoa que é apaixonada por Jazz consegue não tocar.
J.D.: Quando era miúdo tinha muito jeito para a música. Tanto chateei os meus pais a cantar e a fazer batuques com as mãos, que eles me levaram a um professor de música que dava lições e ele fez-me um exame. Ali, uma coisa rápida. E eu portei-me exemplarmente porque tenho um ouvido de cão, um ouvido sensacional. É a única coisa saudável com que eu nasci. E ele fez exercícios com um piano, de costas, e disse que sim, que eu tinha aptidões musicais extraordinárias, mas que tocar piano não porque tinha a mão muito "sapuda". Talvez tocar violino. Ora o violino não era um instrumento da minha preferência e disse aos meus pais que não. Pronto, fico assim. Não se pode ter tudo na vida. E então tocava no Hot, em concertos, nos bares do Técnico, tocava precursão. Na inauguração da cantina universitária, até em sítios menos recomendáveis, que eram, aliás os meus preferidos. Depois descobri que tinha jeito para tocar trombone. O trombone não tem posições, não obriga tipo esta posição dá esta nota como no piano. No trombone apalpa-se o som. Então tinha boa boca e tocava. E fiquei assim um músico falhado para cumprir aquela máxima que diz que todo o crítico é um músico falhado. Não sou crítico mas...
Não tenho pena de não ter sido músico, porque os músicos de que eu gosto e prefiro são tão bons que sofreria muito mais sendo músico do que não o sendo.
Houve uma vez um crítico que tirou um solo do Coltrane de ouvido, era o Coltrane ainda vivo. Um daqueles solos em que ele abre e deita tudo cá para fora a uma velocidade incrível. E ele teve o trabalho de tirar nota por nota e por na pauta. Depois chegou ao pé do Coltrane e pediu-lhe para tocar. O Coltrane não foi capaz. A história é interessante porque nota que, como um tipo quando está a falar, a discursar, a improvisar, é mais rápido do que estar depois a ler. Perde tempo na leitura e é incapaz de falar como improvisou. Nós éramos capazes de repetir esta entrevista. Mas havia sempre outras palavras que surgiam, outras pausas, alturas em que gaguejámos e passávamos a não gaguejar, alturas em que fomos fluentes e passávamos a gaguejar. Até o Coltrane não tocava como ele.
Dif.: Começou a surgir aqui há uns tempos um certo interesse por aquilo que se chama "world music". Como é que interpreta isso? É só folclore? É só porque o que se conhece está esgotado?
J.D.: Eu detesto essa coisa dos nomes porque depois não se sabe do que é que se está a falar. O que é o Hip Hop? Sei lá o que é o Hip Hop, e depois no rock existem imensas classificações que depois as diferenças são mínimas. É tudo para alimentar o mercado. É tudo inventado por tipos que estão em gabinetes.
Essa do world music é outra técnica de marketing. Eu agora estive em Berlim numa reunião internacional, com os world music todos, os países todos, Portugal incluído com a Etnia que é uma célebre cooperativa do Porto - aí está um dos centros de "música limpa" neste país de música para a frente, de música portuguesa - mas estavam lá todos. Eu fui lá convidado para falar, eu e o João Lisboa, e ali no meio da selva lhes disse: o world music não existe. O world music é uma invenção, mas eu enfim, tolero. Todos nós sabemos o que é o world music.
Eu penso que o world music é interessante, simplesmente é música étnica, para não entrar com outra definição, mas esta ao menos é uma palavra inteligível. É música de diferentes países, é musica folclórica. Qual é a diferença entre música folk e música étnica? Vá lá o diabo descobrir. Mas gosto sim senhor. Gosto mais de umas do que de outras. Há folclores que eu não entendo, e que me arrepiam e que não percebo nada do que estou a ouvir, e que me massacro e me fustigo de ouvir e depois às vezes chego a gostar.
Dif.: E a tentativa que alguns músicos da pop fazem para incorporar elementos dessas músicas na música deles. Já não tem nada a ver com isso.
J.D.: Acho bem, eles têm liberdade de fazerem aquilo que quiserem e é uma técnica de colagem que também ela própria já está ultrapassada. Agora no Jazz também existe isso. Existe por exemplo eles porem excertos de discos da "Blue Note" que é uma marca de discos que encabeça esse movimento que é pôr um tema de 1958 depois misturado com rap, e depois por vozes em cima, e depois efeitos, e sai uma salganhada sem definição. Para um tipo que gosta de música não é essa a solução.
Dif.: Não será uma questão de mera colagem comercial.
J.D.: É colagem. Vocês sabem melhor até que eu que com a aritmética não se resolve nada, só com a álgebra é que tudo se resolve. Portanto somar aritmeticamente não dá nada de novo.
Dif.: Mas se não fosse essa colagem, provavelmente muita da música étnica que hoje se conhece não seria conhecida. Por exemplo estou-me a lembrar das vozes búlgaras. Quando a Kate Bush lançou o álbum dela [The Sensual World] em 1989, ninguém ouvia falar das vozes búlgaras.
J.D.: Mas existiam. Não é a Kate Bush que é responsável. As vozes búlgaras são monumentais. Nosso senhor faz coisas certas por linhas tortas. Se calhar de vez em quando sai uma dessas para o grande público através de uma colagem. Ainda bem. Se as colagens servirem para isso já não é mau.
Dif.: Tem algum projecto na manga para os próximos tempos?
J.D.: Eu já fiz tudo o que tinha a fazer. Talvez um programa de televisão. Outro, como as imperiais. Vocês já repararam que um tipo vai a uma cervejaria, pede uma imperial e o empregado diz, regra geral, noventa e nove por cento das vezes: "Outra?". Todos eles. Mas outra porquê? Você está-me a denunciar que eu já bebi uma?
Dif.: De resto confesso que nos facilitou imenso a vida, porque o José Duarte tem fama de ser um óptimo entrevistador mas um péssimo entrevistado, porque está permanentemente a fazer trocadilhos com as perguntas e deixa os entrevistadores...
J.D.: Só as escritas. As escritas é que eu detesto, e aí apuro.
Dif.: Já agora, só mais uma pergunta, para a população do Técnico, há algum disco que quisesse recomendar a quem não conheça nada de Jazz.
J.D.: Qualquer Miles Davis dos anos sessenta com o Wayne Shorter, o Herbie Hancock, o Tony Williams e o Ron Carter; talvez o "Miles Smiles" ou o "E.S.P.".

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